…só quero que digam por aí que eu não acreditava em nada. Nem ideais, nem sonhos, nem planos de dominação mundial. Nada. Contem que até escrever a palavra “crença” me era negado, por defeito genético. Façam ser verdade que nunca quis ter fé ou confiança em nada e nem em ninguém. Que passei os 90 minutos que me concederam sem entender o que estava acontecendo, e sem me esforçar por um segundo que fosse para tentar entender. Simplesmente entediado e sendo levado por tudo que nos leva.
Divulguem que eu não tinha partido político, time de futebol, prato preferido, cor da sorte, signo, RG, nada. Nenhum sinal que acuse a minha participação nessa ópera bufa, nessa comédia de erros mal ensaiada e sem platéia. Contem em cada batizado que eu não apresentava sinal de nascença, cicatriz de operação, marca de vacina, tatuagem, buraco de piercing ou de tiro, nada.
Espalhem para todos que quiserem ouvir que nunca tive prazer com o contato humano. Afirmem com veemência que a existência humana sempre foi para mim meramente tolerável. Quando muito uma resignação medíocre e cotidiana a qual me acostumei. Contem que fingia cada sorriso, cada olhar de interesse, porque nunca quis sorrir para ninguém, nem nunca tive interesse por nenhum assunto que saísse de boca humana. Repitam à exaustão que sempre pensei ser o bicho gente uma experiência mal sucedida, um erro de laboratório, uma gloriosa cagada divina.
Lembrem a todos que nunca fiz nada, não consegui nada, não alcancei pôrra nenhuma. Mas deixem claro que não foi sob o signo da derrota que atravessei a existência, mas sim sob o sinal inegável da nulidade, do cinza, do apático, do esquecível. Porque a derrota ainda inspira piedade, comiseração, dó, e nem assim quero ser guardado. Nem por pena.
Apaguem quaisquer lembranças de fato ocorrido, momento vivido, beijo dado, porrada sofrida, qualquer coisa que se assemelhe a uma expressão de emoção humana. Deletem da memória universal qualquer coisa que possa ser distinguível, extraordinário, pois que a ordinariedade seja a última poesia.
Não deixem nenhuma foto inteira, nenhuma fita de vídeo, nenhum registro ou evidência. Permitam que eu me torne uma vaga lembrança em algum canto pouco explorado e vagamente usado da memória de um velho que todos chamam de louco, mentiroso e que inventa histórias que ninguém acredita. Deixem que me desvaneça.
Peço que tenham a educação, a decência, a generosidade, o respeito de fazer somente isso no segundo seguinte à minha morte. Nenhuma elegia, nenhuma homenagem, nenhuma placa de bronze nem flores plásticas. Nada de coroas com letras soltas, com mensagens ilegíveis, com flores mal combinadas, de gente que nunca deu um telefonema para dizer se estava vivo – não que isso realmente importasse. Tenham a gentileza de evitar discursos ou aplausos, que seja um momento discreto, apagado, nulo… de preferência com chuva fina, cheiro de terra molhada e dois coveiros. Mais ninguém.
Peço isso porque estou cansado de responsabilidades. Estou enfarado da facilidade humana de me condenar a atitudes, ações, comportamentos, gestos, reações. Me desespera como é fácil, para cada um desses que atravessam a rua na faixa de pedestres, ditar normas e regras – desde que não seja dele a obrigação de seguir e cumprir as malditas normas.
Diz o ditado que a responsabilidade, o dever, isso é, certamente, a única coisa que nunca nos livramos, pois até mesmo no leito de morte, prestes a dar o último passo, ainda dizem ao moribundo que ele deve lutar pela vida… deve!!! E depois de perdida a luta obrigatória, as lembranças. A necessidade podre de que se guardem boas coisas, que se enevoem as brigas, as desavenças, as canalhices, a putaria que possa ter sido a vida daquela criatura que teve o bom senso e a elegância de desaparecer. O finado passa então, a ter o dever de ser bom, correto, probo, honesto e cheiroso.
E pro resto da vida do resto de vivos, permanecer puro e imaculado. Sem nódoas, sem manchas amarelas, sem cantos quebrados. Morto e condenado ao esforço perpétuo de se manter virgem.
Peço aos inimigos, me deixem ser um morto. Só isso… morto! Não me amarrem comentários ao pescoço para que eu não precise seguir a eternidade me comportando. Deixem-me ser o morto torto no caixão. Aquele que não passou pela porta e precisaram colocá-lo de pé. O nariz ainda sangra, as mãos rígidas, e ele de pé, cambaleante, amparado pela parentada, passando pela porta onde seu caixão não fez curva. Me deixem ser o morto que se gargalha de prazer pela ausência. Me deixem ser um morto realizado, completo, saciado. Que tudo tenha sido feito, realizado, alcançado, e que por isso mesmo, tudo possa ser esquecido. Esquecido, portanto livre.
Não me condenem a ser um fantasma opressor que não deixa os outros seguirem em frente. O fantasma amaldiçoado que pesa nos ombros, que dá um gosto ruim nas bocas, que assombra sem aparecer à noite. Que limita…
Só quero, então, que vocês digam que eu fui um calhorda, como eu realmente sou. Não a suprema expressão, mas a mais sincera tentativa fracassada de um rematado canalha. Que eu fui um covarde, como eu realmente sou. Que fui medíocre, invejoso, fedorento, preguiçoso, careca, feio, desarrumado e bêbado. Contem nos jardins de infância que eu comia de boca aberta e arrotava até com copo de água. Não permitam que criança nenhuma no mundo queira ser como eu “quando crescer”. Publiquem em letras coloridas por todos os jornais e muros do mundo que eu fui a pior versão de um show que nunca devia ter entrado em cartaz – a humanidade. Deixem claro que isso eu acreditava: que a humanidade não devia ter acontecido, que o mundo deveria ter sido entregue aos platelmintos, às formigas cabeçudas ou mesmo às moscas de banana, qualquer coisa, menos esse troço errado que é gente. Esse tipinho idiotizado que não consegue tomar sua sopa sem jogar sal no prato ao lado. Que não consegue olhar somente para o seu umbigo sujo e inflamado. Esse bichinho que não sabe se virar sozinho, que não consegue falar o que pensa, que não consegue ser honesto com o que sente, que não faz sem esperar retorno, que não é capaz de ser o que vive cuspindo que é, nos discursos e nas salas de espera – gente. Não consegue ser gente.
Ser humano. Essa comprovação definitiva e verdadeira de que Deus não tinha a menor noção do que estava fazendo, e que Einstein estava errado; ele joga dados com o universo SIM!! E algumas vezes…. snake eyes!
Quando eu estiver morto, joguem terra por cima e vão pra festa. Qualquer festa. Se insistirem em fazer algo meramente próximo de uma reverência (porque homenagem não merecemos e não permitirei), bebam um último chopp em meu nome e me deixem em paz.
Perdoem-me somente a arrogância, e me deixem em paz. Eu tenho certeza que vou deixar vocês em paz.
Só isso que eu peço.
Eduardo Mesquita, O Inimigo do rei -
eduardoinimigo@gmail.com -
http://www.ogritodoinimigo.com/Vagando pela ciber ocean, encontrei esse texto que fala por mim a alguns que trocou a independência, a honestidade, a dignidade, a amizade, o profissionalismo, a inteligência, a competência, além do amor próprio e pelo semelhante, por algumas moedas e pelo lugar a mesa no banquete de imundices que alimenta os vis. E que em galhofarias pelos becos escuros, por onde passeiam os ratos, os pobres de espírito e de atitude, no canto escuro por onde só trafega aqueles que pactuados com o lado negro da força encontram abrigo para que ao cair das suas mascaras o mundo não veja quão horripilante é sua verdadeira face.
João Ferreira Jr