segunda-feira, 17 de novembro de 2008

CULPA SEM CRIME - Malu Fonte

Ao mesmo tempo em que avançam as estratégias legais, jurídicas, punitivas contra os agentes da violência contra a infância, explodem no noticiário e em toda sorte de programas de televisão as narrativas dando conta de uma quantidade cada vez maior de crimes cometidos contra crianças. Cada vez mais bárbaros, como é o caso da menina encontrada aos pedaços dentro de uma mala abandonada em uma rodoviária no Paraná. Cada vez mais incompreensíveis, como o caso Isabella Nardoni supostamente atirada do alto de um edifício pela família. Cada vez mais chocantes, como no caso do garotinho em Inhambupe (BA), vítima de abuso sexual e estocado com cerca de 50 golpes de faca, uma quantidade que parece sequer cabível em seu corpo pequeno de apenas 8 anos. Cada vez mais perversos, como as torturas praticadas anos a fio por uma empresária de Goiânia contra a menina Lucélia Silva, cujas unhas, dentes, língua e pele foram mutilados com alicates, queimaduras, martelos.

VIA-CRúCIS - Como sempre ocorre nesses casos, o que mais choca é o cruzamento entre a condição indefesa, inocente e vulnerável inerente à criança e a barbárie contida no comportamento dos algozes adultos. Na última semana, em Salvador, no entanto, uma tragédia envolvendo a morte de crianças e fartamente veiculada nas emissoras de TV chamava a atenção justamente pela impossibilidade de julgamento e condenação dos aparentes culpados, os pais. O que desconcertava o telespectador mais analítico, nesse caso, era justamente o potencial de socialização dos papéis dos culpados no episódio. A quem atribuir culpa quando o contexto social e econômico paira sobre uma cena de dor e morte? Até a metade da semana, duas crianças haviam morrido e um bebê de 4 meses apresentava quadro grave após a casa em que moravam ter sido incendiada em função de uma vela acesa usada pelo pai. A razão do uso da vela deveria ser levada em conta pelos telespectadores e por pais ciosos que vão logo recorrendo a adjetivos condenatórios para nominar a (ir)responsabilidade e a culpa de um homem que perdeu os filhos, a casa, todos os pertences e todas as possibilidades de viver em paz pelo resto da vida. Juristas, delegados, advogados aqui e acolá foram entrevistados para falar da ′apuração′ das responsabilidades dessa família na morte dos filhos. Haverá inquérito, investigação, interrogatório e toda a via-crúcis jurídica e policial para que finalmente se chegue a um consenso quanto ao tipo de responsabilidade, de culpa ou acusação que devem ser aplicadas aos pais.

VELA E CUBÍCULO - Numa perspectiva mais abrangente, tem-se a impressão de que uma tragédia dessa natureza, ocorrida numa casa pobre no bairro de Plataforma (subúrbio ferroviário de Salvador), nada mais é senão a miséria marcando e demarcando seus territórios para o assombro e a incompreensão dos mais privilegiados. Parece óbvio e simples perguntar como podem pessoas adultas, pai e mãe, serem ignorantes ou irresponsáveis o suficiente a ponto de acender uma vela num cubículo, quando qualquer sujeito de bom senso sabe dos riscos que uma ação dessas representa. É nesse tipo de raciocínio simplista que chega uma sociedade que vira as costas para seus refugiados sócio-econômicos e em nenhum instante enxerga o elementar: trata-se de um casal pobre ao extremo, ambos desempregados, com renda zero e abastecimento de água e luz cortado por falta de dinheiro para o pagamento. Nesse contexto, a vela jamais seria considerada por quem a ela recorre como um objeto de risco ou ameaça, mas como praticamente um luxo, resquício último da normalidade, ou seja, da possibilidade de iluminar uma casa escurecida pelo desemprego, pela miséria, pela falta de oportunidade crônica, pela falta de capital social e simbólico de milhares de famílias que, como essa, representam o que os sociólogos hoje chamam de refugos do capitalismo. Todas sem ponto de chegada, condenadas a atravessar a vida remando sob a miséria, algo muito diverso da pobreza, pois essa ainda carrega em si alguma dignidade.

PROIBIR DE PARIR - Do que a sociedade e suas instituições podem acusar essa família da Plataforma? Ela já estava condenada muito antes dessas crianças morrerem de queimaduras. A morte apenas torna mais fortes as cores de sua tragédia pessoal crônica. Os defensores de primeira linha do planejamento familiar, que em última análise significa não outra coisa senão proibir definitivamente os pobresde se reproduzirem, certamente os condenarão pelo ato de um dia terem cometido a audácia de fazer sexo sem proteção, quando ainda não era a hora de ter filhos. Alguém tem uma resposta satisfatória para quem é muito pobre e que, mesmo assim, quer ter filhos? Não vale dizer que tem que esperar, se planejar, para tê-los na hora certa. Quem disse que essa tal hora certa chegará, se todas as possibilidades estão sempre fechadas para tais pessoas? Sem políticas públicas e justiça social, o rompimento do ciclo de miséria e pobreza é tão provável quanto um milagre. Na maioria dos casos, planejamento familiar não é outra coisa senão o desejo bem descrito e bem elaborado pelos mais privilegiados de proibir de parir aqueles que não têm nem terão dinheiro.

Malu Fontes Jornalista, doutora em comunicação e cultura e professora da Facom-Ufba.
Publicado no jornal A Tarde, caderno Revista da TV, em 16/11/08.

Fonte: http://www.atarde.com.br/jornalatarde/revistadatv/noticia.jsf;jsessionid=E1A1CD8907CEA0FB19E3004D7A6BF1CB.jbosstosh1?id=1008088

Nenhum comentário: