segunda-feira, 24 de novembro de 2008

CRISE, TV E CONSUMO - Malu Fonte

Se há algo de que o telespectador médio deve duvidar é dos conselhos quase diários dados nos telejornais pelo presidente Lula: a crise existe, mas o cidadão tem que consumir, senão as coisas ficarão muito piores. Segundo o presidente, não é porque há uma crise no mundo que o povo vai parar de comprar. Tudo bem, o argumento é coerente, afinal se ninguém compra nada, o mercado implode e a crise se exacerba. Entretanto, diante das circunstâncias atuais, como pode o gerente do País esperar que suas recomendações para comprar um carro ou um bem de consumo mais sofisticado sejam seguidas pela população assalariada?A cobertura da crise pelo telejornalismo é emblemática em sua essência, afinal, nada mais associado ao consumo que a TV, veículo moldado, por excelência, para convidar (e estimular incessantemente) à aquisição de coisas, sobretudo aquelas de que não se precisa, as supérfluas, a cereja do bolo do capitalismo.Numa leitura mais subliminar, é de um simbolismo sem par uma análise, hoje, confrontando e contrapondo os discursos dos telejornais, no que diz respeito à avalanche de informações apocalípticas sobre a crise, em todas as suas dimensões, e os discursos do intervalo comercial televisivo, com seus mantras eternamente repetitivos e sedutores, batendo sempre na mesma tecla: compre, compre, compre.

BJÖRK - Todos os dias, basta meia hora em frente à TV, diante de qualquer telejornal, para tomar conhecimento do tamanho do caos no mundo e aqui. Que a primeira economia do mundo estava ameaçando capengar feio desde que os americanos deixaram de pagar as hipotecas de suas casas bacanas, todo mundo já sabia há algum tempo. Mas que isso iria dar no que deu, sabe-se agora e um pouco mais a cada dia. Primeiro foi a Islândia, país cuja única referência que alguns poucos brasileiros tinham era a nacionalidade da cantora esquisitinha e cult Björk, que caiu de podre de falência.Logo após a queda da Islândia na vala das economias agonizantes, o brasileiro foi informado através da voz solene e do senho franzido sob a mecha grisalha de William Bonner que a média de demissões na Europa, por dia, é de 10 mil pessoas. Esta semana entrou nas chamadas de todos os telejornais do mundo mais uma bomba: a segunda economia do mundo, a japonesa, declarou-se oficialmente em recessão. Quer mais? Por aqui, as montadoras, em série, não apenas anunciam férias coletivas para logo como as antecipam uma, duas, três vezes e a cada vez que o fazem aumentam o universo de trabalhadores e de funções que serão contemplados com esse descanso involuntário fora de hora e às vésperas do Natal.

QUANDO FEVEREIRO CHEGAR - Portanto, perguntar não custa. Quais serão os cidadãos e consumidores insanos que, diante dos aconselhamentos do Presidente da República em suas falas na TV, irão correr para a loja, imobiliária ou concessionária mais próximas para saciar seus sonhos de consumo neste Natal que já bate à porta? A questão não é de precaução, mas de medo mesmo, ou, no mínimo, de bom senso. Qual o contingente de assalariados neste País que, diante de tal cenário econômico nacional e internacional, tem qualquer garantia de que terá emprego - e, portanto, salário, quando janeiro ou fevereiro chegarem? E aqueles que têm dinheiro para comprar veículo, casa ou eletrodomésticos de alta tecnologia à vista neste País conta-se praticamente nos dedos. Só inconseqüência ou otimismo abilolado para levar um brasileiro, hoje, a fazer dívidas de longo prazo.Outro aspecto que merece quase uma gargalhada são os empresários entrevistados nesses programas sisudos de economia. Arvoram-se a esquecer de seus costados financeiros esfacelando-se cada dia mais nas bolsas de valores e descem o malho no governo federal, criticando-o por não estar fazendo o dever de casa como eles, empresários, que estão cortando custos, blá, blá, enquanto o setor público não estaria cortando nada.

E A ARGENTINA? - Reclamam do quê? Coloque-se no lugar do cidadão comum: o governo usa milhões dos cofres públicos para socorrer o setor privado, visando evitar que empresas até ontem sólidas virem pó. Do dinheiro público que migra todos os dias para socorrer o tal mercado, ninguém se queixa. Empresários falam como se a maior gravidade orçamentária brasileira fosse os não-cortes no setor público. Assim como se dizia lá no passado que o problema brasileiro era a saúva, hoje é a corrupção, alastrada e incontrolável. E o que é a corrupção senão a transferência criminosa e volumosa de dinheiro público para bolsos privados? Continuando a questionar esses paradoxos discursivos dos atores do mercado, alguém poderia explicar por que a imprensa brasileira, televisiva e escrita, está tão quietinha e omissa diante da surrupiada do dinheiro da previdência privada que o governo argentino de Cristina Kirchner promoveu? Ah se fosse Hugo Chávez (Peru), Evo Morales (Bolívia) ou Rafael Correa (Equador). Miriam Leitão e Arnaldo Jabor estariam roucos de tanto bradar.

Malu Fontes Jornalista, doutora em comunicação e cultura e professora da Facom-Ufba.Publicado no jornal A Tarde, caderno Revista da TV, em 23/11/08.

http://www.atarde.com.br/jornalatarde/revistadatv/noticia.jsf;jsessionid=4775A9B55B551BA18BBE91C6332E0B1F.jbossdube1?id=1013525

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